Em 2015 ja tinha visitado Marvao e Castelo de Vide, as duas vilas mais conhecidas na Serra de Sao Mamede. Cinco anos depois, decidi regressar para explorar outras zonas da regiao, mais remotas e em contacto mais direto com a natureza. Descobri povoacoes raianas onde a tradicao sobrevive nos dias de hoje e uma natureza quase intacta, protegida nas encostas da serra.
Pedalar pelos caminhos do comboio
Ja tinha elogiado o Train Spot em 2015 e sabia que um dia iria regressar. Voltar a este alojamento e tambem recordar a historia dos caminhos de ferro em Portugal.
A desativada estacao de Marvao-Beira foi, em tempos, uma importante paragem na ferrovia portuguesa. Parte integrante do ramal de Caceres, foi inaugurada em 1880 e obteve grandes obras de extensao em 1926. Estavamos no inicio da Ditadura Militar e a estacao tinha sido alargada para incluir uma delegacao aduaneira de controlo do transito de pessoas e mercadorias. Na altura, foram tambem construidos edificios para o alojamento dos trabalhadores, e um anexo com restaurante e pensao, para que os viajantes pudessem aguardar pela aprovacao aduaneira para atravessar a fronteira.
E assim, gracas ao controlo fronteirico, a Beira floresceu durante as decadas da Ditadura Militar e do Estado Novo. Com a queda do regime e a adesao a Uniao Europeia (e ao espaco Schengen, ao qual Portugal aderiu em 1991), a estacao de Marvao-Beira foi, pouco a pouco, perdendo a sua importancia. Os comboios regionais do ramal de Caceres foram suprimidos em 2011, e, no ano seguinte, o Lusitania Comboio Hotel deixou tambem de passar por esta linha, encerrando-se, entao, definitivamente o ramal de Caceres.
Hoje, o edificio transformado num alojamento preserva a aura dos tempos passados. Na fachada exterior da estacao ainda podemos ver os 13 paineis de azulejo, em azul e branco, que retratam diferentes locais nacionais e davam as boas-vindas a quem chegava a Portugal: o Castelo de Marvao, o Templo de Diana (Evora), o Mosteiro de Alcobaca e a Se de Braga sao alguns dos exemplos.
Nos carris, e um neo-zelandes que devolveu a vida a linha ferroviaria. Trocando a azafama de Barcelona e Lisboa pela Serra de Sao Mamede, Lenny MacLeode criou a Rail Bike Marvao. Em vez de carruagens movidas a eletricidade, partes do ramal de Caceres podem agora ser percorridas a pedal, atraves das bicicletas criadas pelo Lenny.
Durante duas horas pedalei 15 quilometros por entre os sobreiros e carvalhos da Serra de Sao Mamede. O ponto alto do percurso e a chegada a Ponte da Ribeira de Vide, a 30 metros de altura do curso de agua, e com um vagao de 108 metros. E neste ponto que se os carris mudam de direcao e se inicia a viagem de regressar a estacao ferroviaria de Marvao-Beira.
Na rota no contrabando do cafe
Visitar zonas de fronteira e tambem ver de perto as rotas do contrabando que existiram em Portugal, especialmente na epoca apos a Guerra Civil espanhola, em que muitos portugueses e espanhois atravessavam a fronteira a monte para trocarem mercadorias com o pais vizinho.
Para conhecer melhor esta realidade, fiz ao Percurso do Contrabando e do Cafe (PR4 MRV) do Parque Nacional de Sao Mamede. Iniciei o percurso junto a igreja de Galegos e entrei mato adentro ao longo de 6 quilometros.
No pico da explosao da primavera, encontrei um trilho verde com ervas que me davam quase ate a cintura. No caminho isolado onde o sobreiro e rei nao encontrei vivalma, mas fui passando por varios animais: porcos, cavalos, burros e ovelhas. Atravessei tambem veredas bastante estreitas, algumas em calcada medieval e ladeadas de muitos sobreiros.
Numa das encruzilhadas pude distinguir o Castelo de Marvao ao longe, num pequeno planalto. O caminho deu-me ainda a conhecer povoacoes fronteiricas, incluindo uma espanhola, La Fontañera, onde os contrabandistas guardavam o cafe que, depois, distribuiam pelas povoacoes espanholas.
Era por estes caminhos sinuosos que muitos se arriscavam na calada da noite, enfrentando a escuridao da serra e engolindo o medo da guarda fiscal e dos carabineros. Tentavam fugir desesperadamente a vida de pobreza e miseria generalizada que se vivia na raia alentejana na epoca de Salazar e Franco.
Eu cresci com a memoria destas historias, ja que um desses contrabandistas que furavam a noite e viviam entre dois paises foi o meu avô, nascido em Espanha e acolhido num monte raiano alentejano a partir da guerra civil que rebentou no pais vizinho. Foi, de facto, a partir desta altura e ate meados dos anos 60 que a mercantilizacao clandestina entre Portugal e Espanha mais se acentuou.
Mais natureza na Serra de Sao Mamede
Depois de ter exausto as energias a pedalar e a andar, tirei algum tempo para relaxar na natureza do Parque Natural da Serra de Sao Mamede.
A primeira paragem foi na Barragem da Apartadura, que encontramos deserta e com aguas transparentes. Sem qualquer infraestrutura balnear, ha, contudo, varios espacos entre os pinheiros para estender a toalha e gozar do isolamento. A unica coisa que impediu de dar um mergulho, foi mesmo a temperatura. As nuvens negras aproximavam-se e ameacavam romper-se.
A proxima paragem foi em Portagem, uma pequena povoacao do concelho de Marvao, assim denominada porque por aqui passavam os judeus expulsos pelos reis catolicos, que fugiam a Inquisicao Espanhola que se iniciou no seculo XV. A ponte medieval que assinalava a fronteira e a torre onde era paga a “portagem” ainda sobrevivem hoje e dao encanto a povoacao.
Em jeito de despedida da regiao, passei tambem pela Cascata do Pego do Inferno, ja a caminho de Portalegre. Diferente da sua homonima no Algarve, a queda de agua da Serra de Sao Mamede cria um poco natural, para o qual e necessario descer com cuidado. E facil de encontrar, mas mais uma vez, a temperatura impediu de dar um mergulho. Fica a promessa de regressar a serra com temperaturas mais confortaveis ao estado liquido.
Onde ficar na Serra de Sao Mamede – Alojamento
Em 2015 eu ja tinha recomendado o Train Spot, que continua a ser o meu local preferido na regiao, pela sua originalidade e pela simpatia de quem nos recebe. Nao e todos os dias que nos deparamos com uma estacao de comboios convertida em estalagem. Leiam aqui o que escrevi na altura sobre este alojamento.
Contudo, existem muitas opcoes na regiao de Marvao e Castelo de Vide, e um pouco por toda a Serra de Sao Mamede. Por exemplo, a Estalagem de Marvao fica dentro das muralhas da vila e oferece quartos bastante comodos e restaurados com cuidado. Ja em Castelo de Vide, o Convento Senhora da Vitoria tem tambem quartos tradicionais alentejanos, e acesso a uma piscina, com precos bastante simpaticos.
Onde comer na Serra de Sao Mamede – Restaurantes
As minhas recomendacoes gastronomicas nesta regiao estao neste artigo. Contudo, nesta viagem fiquei a conhecer mais dois restaurantes, que ficam na povoacao de Beira: o Sabores de Marvao e o Sopas e Petiscos.
Dos dois, o meu preferido foi, sem duvida, o Sopas e Petiscos. Nao ha pagina na internet nem fotografias para o provar, mas aqui experimentei o melhor que o Alentejo tem para oferecer: uma hospitalidade sem limites e petiscos feitos na hora com produtos locais: omelete de espargos, tabua de queijos e as melhores pataniscas de bacalhau de sempre. Este restaurante fica mesmo na Beira, a poucos metros do Sabores de Marvao.
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